Há não tantos anos atrás, me intrigava olhar para o cenário da nova literatura brasileira e perceber a quase ausência de homens negros publicados. E pra falar da tradição, foi apenas no ensino médio que me veio a notícia de que Machado de Assis foi um homem negro, mesmo que seu nome me fosse familiar há bastante tempo e eu já tivesse tido algum contato com seu texto. Fato é que as coisas mudaram e figuras como Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Geovani Martins e Edmilson de Almeida Pereira são alguns dos responsáveis por modificarem esta realidade. Apesar da origem burguesa do gênero romance, estes autores estão não só publicados, mas muitíssimo bem publicados, lidos, conhecidos e premiados. Graças a eles, e outros mais velhos que passei a conhecer, meu imaginário de intelectualidade e elaboração artística subjetiva de homens negros mudou radicalmente.
Por outro lado, a urgência e emergência destas vozes, destas narrativas, destes livros que agora são lidos, incomodou um grupo de cidadãos do bem. São eles herdeiros de um país que nunca lidou bem com pessoas negras em posições de destaque, e também saudosistas da ditadura, responsáveis pela ascensão da extrema-direita e de um agora ex-presidente que segue emburrecendo seus fanáticos seguidores.
Recorte da capa de "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório
O alvo da vez está sendo o livro do escritor carioca Jeferson Tenório. No terceiro romance do autor, publicado no ano de 2020, pela Companhia das Letras, acompanhamos a busca de Pedro pelo passado de seu pai, professor de Literatura, assassinado pelo racismo. O livro, que teve significativo número de leitores, foi também o vencedor do Prêmio Jabuti de 2021, respeitado prêmio literário brasileiro. Tudo isso prova a relevância da obra, que se ancora em sua qualidade literária. Entretanto, há pouco mais de uma semana, a obra, aprovada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), foi criticada pela diretora de uma escola do Rio Grande do Sul. Um ataque infundado a um autor que viveu anos neste estado, e lá formou tantos sujeitos, visto que é um excelente professor e tem experiência na sala de aula da educação básica. Que não reste dúvidas: sua obra pode e deve estar nas escolas.
Poucos dias depois, o Núcleo Regional de Educação de Curitiba emitiu documento oficial exigindo que os colégios que tivessem exemplares dos livros deveriam devolvê-los em um prazo determinado. Como nomear estas ações com outro nome que não seja censura? Os fiscais da moral e da educação, a partir de trechos da obra completamente retirados de contexto, afirmaram se tratar de um livro com alto teor pornográfico. Faz algum tempo que li a obra, é verdade, e me lembro de breves descrições de sexo e confissões de desejo, coisas da puberdade.
E não estão os adolescentes passando por essas questões?
Em qual fase da vida começa-se a lidar com isso?
É no mínimo apelativo e raso pautar-se na sexualidade, a partir de uma moral cristã e castradora, para censurar um livro que vai muito além disso. Talvez o velho Freud explique alguma coisa... Sim, as cenas estão lá, mas o livro não é, nem de longe, sequer parecido com pornografia. Aliás, de cenas de sexo e erotimso, a literatura brasileira está bem servida. Para saber disso, basta conhecer o básico. Também foi-se o tempo em que eram necessários livros (ou revistas) para acessar conteúdo erótico ou sexual, não é? A internet, que estes mesmos fiscais curiosamente não querem que seja regulada, é de fácil acesso a jovens do ensino médio. Ou estou enganado? Me questiono se esses protetores da moral e dos bons costumes leram na íntegra “O Avesso da pele”, e desconfio da humanidade e do senso crítico de quem leu o livro e não pense que ele seja adequado para leitura de estudantes do ensino médio. Mas, infelizmente, não me surpreende que tamanha burrice, conservadorismo, falta de senso estético e ético, venham daqui de onde falo, do sul do país.
Estas pessoas que, no abuso de suas posições de poder, desafiaram uma deliberação tão séria e acurada, e censuraram um autor negro, um professor, mostram sem medo suas faces racistas e acríticas. Com a decisão vinda do Paraná, entendo que fazem este ataque a obra de Jeferson porque a educação antirracista não está na agenda de um governo que precariza a função docente a cada dia. Escrevo isso do lugar de quem é professor da rede pública deste estado, e percebe que o trabalho está sendo, a cada dia, substituído por plataformas de “ensino”.
Essas tentativas de censura à literatura escancaram que quem flerta com o autoritarismo têm horror à arte, e fica evidente o desejo de amordaçar vozes que denunciam a violência policial racista. O avesso da pele é um mergulho no lado de dentro das pessoas negras, nas complexidades das relações familiares, no impacto do racismo em nossos processos psicológicos. O fato de que este livro esteja nas escolas, somente faz cumprir o que preconiza a Lei 10.639, além de ser um maravilhoso instrumento para fruição literária de estudantes, dado o zelo de sua construção. Para quem leu o avesso da pele e defende uma educação emancipatória, não é preciso explicar porque o livro pode e deve estar nas escolas do país; para os seguidores do obscurantismo, entretanto, uma obra formidável e provocadora, incomoda.
Jeferson Tenório
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