Por mim se vai à cidade dolente,
Por mim se vai à eterna dor,
Por mim se vai à perdida gente.
Justiça moveu o meu alto Criador,
Que me fez com o Divino poder,
O saber supremo e o primeiro amor.
Antes de mim coisa alguma foi criada
Exceto coisas eternas, e eterna eu duro.
Deixai toda esperança, ó vós que entrais!
Canto III, “A Divina Comédia”, de Dante A.
A poética de Dante Alighieri no livro do Inferno nos abraça e nos carrega ao longo de uma viagem de dúvidas postas e sanadas durante os nove círculos do reinado de Lúcifer. A câmera de Jason Banker em Toad Road nos beija os lábios e segura em nossa mão ao longo das últimas vontades de Sara (Sara Anne Jones), nos enchendo de dúvidas e não nos sanando nada. A única certeza que temos é a de que Sara alcançou o seu desejado destino.
Aqui o início é o fim. James (James Davidson) acorda desnorteado em meio à densa neve da floresta de York, após semanas desaparecido. Quando James volta à cidade, todas as dúvidas e acusações sobre o desaparecimento de Sara caem sobre ele. Por enquanto, paremos por aqui. Em primeiro momento o que nos interessa é entender o decorrer entre o final do primeiro ato ao final do segundo, futuramente voltaremos aos passos finais de James.
Toad Road (2012), dirigido por Jason Banker
A câmera na mão adotada por Banker entrega o aspecto documental da obra, que se mescla em alguns momentos com a ideia do found footage, acenando ao sobrenatural que somos apresentados durante a caminhada de Sara e James.
Um verão em delírio febril
Tudo começa quando a recém chegada à York, Sara, firma amizade com James e seu grupo de amigos. A relação dos dois ultrapassa os âmbitos da amizade e logo vemos a construção de um novo casal. Dentro do núcleo de personagens, percebemos que drogas no geral, lícitas e ilícitas, são de uso corriqueiro. Álcool, maconha, ácido, cogumelos, cocaína e remédios prescritos são comuns aos amigos. Movimentos de contracultura e a música alternativa também se fazem presentes na trama. O metal extremo, o hardcore e o punk são as vertentes apreciadas pelo grupo.
Sara, construída como uma boa moça da cidade grande que acabou de chegar no interior com seus pais, nunca tinha entrado em contato com o mundo o qual James vivia. A jovem se deixa levar pelos sentimentos e acaba se moldando às suas novas vontades. Seu desempenho escolar despenca, dando espaço à sua nova franja, camisas de bandas e o vício em cocaína. Conflitos amorosos também fazem parte da trama, mesmo que em segundo plano.
Durante uma conversa a sós, James comenta com Sara sobre uma lenda local, a qual dizia que na floresta de York existia uma série de sete portões que levariam ao Inferno. Intrigada, Sara questiona sobre a veracidade da lenda. James responde que tudo não se passa de uma lenda local “Yorkina” do segundo colegiado. Todavia, consiste em uma estrada, em meio às árvores da floresta, usada para o deslocamento até um hospital psiquiátrico. No caminho, existem sete portões, e a cada portão ultrapassado coisas estranhas acontecem. Sua percepção se altera, mudanças cronológicas acontecem e experiências sensoriais tomam conta de quem ousa enfrentar o solo futuro da trilha.
Toad Road (2012), dirigido por Jason Banker
A bela jovem não aparenta satisfação com a resposta de seu companheiro, demonstra ainda mais curiosidade e pergunta se o mesmo já tinha ido até lá. James responde em negação. Após algumas cenas e sequências, somos jogados em uma discussão dúbia entre Sara e James, onde, em primeiro momento, não entendemos ser sobre o relacionamento dos dois ou sobre a lenda. Na próxima sequência, acompanhamos Sara pesquisando na Internet sobre a lenda, e logo após, um plano onde Sara e James vão de bicicleta até a floresta.
Durante o trajeto ao bosque, James e Sara conversam sobre o futuro dos dois como um casal, com planos de sair de York e ir para a cidade grande, possivelmente deixando os entorpecentes para trás e seguindo um novo caminho. Em sua mente, Sara tem outros planos. Ao adentrarem em meio às árvores, ambos discutem sobre a lenda ser real ou não. James comenta que após o quinto portão ninguém nunca voltou para contar história, ou mesmo, talvez ninguém nunca tenha conseguido chegar ao quinto portão. Sara complementa que, em suas pesquisas, descobriu sobre os estágios de alteração da percepção daqueles que tentaram desbravar a trilha, e que é ao anoitecer que as coisas começam a acontecer.
Dentro dos domínios do primeiro portão, você sente que é observado. No segundo, você começa a ouvir coisas. No terceiro, você começa a ver as coisas. No quarto, você desmaia. No quinto, o tempo se deforma e muda, você perde o controle de tudo à sua volta. Por fim, como dito anteriormente, o sexto e o sétimo são totalmente desconhecidos, pois ninguém nunca passou do quinto.
Antes de seguirem rumo ao primeiro portão, Sara diz que tem vontade de usar LSD. James se mostra irritado e diz que isso iria afetar negativamente a experiência de Sara. Mesmo com isso, Sara se mantém firme em suas vontades e se afasta de James até uma árvore, onde lá pinga duas gotas do ácido em sua língua. Ao voltar para James, Sara o beija, pega em sua mão e ambos tomam rumo aos portões.
Toad Road (2012), dirigido por Jason Banker
A primeira parte da sequência do trajeto é composta por cenas de Sara e James pela floresta, acompanhadas por um voice-over, onde Sara explica um pouco mais sobre a lenda e nos conta sobre as suas expectativas, e também de uma trilha sonora em tom nostálgico que nos acompanha até o quarto portão. O clímax da sequência é quebrado por uma cena de Sara em plongée, que se mescla com um take nas árvores em coloração de tonalidade fria, conversando com o então estágio em que ambos se encontram, onde tudo é frio e morto.
Um ponto de relevância nesta sequência é o som. Um synth caótico é adotado junto às cenas de Sara, nos levantando a bandeira de que essa será a última vez que veremos a jovem. Somos colocados ao corpo de James, e um traveling aberto nos aproxima às costas de Sara em corpo inteiro. Percebemos que Sara está encarando uma “deformidade temporal”, uma massa transparente de formato oval, que lembra muito o efeito de um pingo de água caindo em um corpo aquático maior. Ao quase tocarmos os cabelos de Sara, abruptamente a tela escurece e logo vemos James acordando de um desmaio em um ponto da floresta completamente diferente do que estávamos a segundos atrás.
Ainda desnorteado, James levanta e começa a caminhar de volta à estrada enquanto grita por Sara. Somos surpreendidos por um novo voice-over de Sara nos explicando sobre o quinto portão e sobre motivações e possíveis experiências às quais quem aceita a Toad Road, pode enfrentar.
Um inverno em densidade mortuária
James volta para a cidade e é recebido por uma realidade totalmente diferente. A maioria de seus amigos seguiram suas vidas, tomaram novos rumos e mudaram para novos locais. Na fechadura de seu apartamento, James não consegue girar a chave, não é mais seu. James fica sem rumo e liga para seu ex-colega de morada, que o explica todo o novo panorama. James vai passar um tempo na casa de seu tio, afastada da cidade, onde lá faz abrigo no segundo andar do galpão de seu familiar.
Nessas últimas sequências, mais dois voice-overs de Sara nos são postos, onde a jovem nos conta sobre os dois últimos portões, o sexto e o sétimo, respectivamente. No sexto, “isso”, tudo aquilo o que foi apresentado nos estágios anteriores, te pega. Você fica completamente refém, sua sorte não existe mais. Você é obrigado a aceitar e deixar que “isso” te possua. Deixe o seu velho “eu” no chão e siga o caminho. Por fim, ao passar o sétimo, você se encontra cercado pelo mais completo e pleno nada. Um vazio sem tempo e sem dor. É a sua inexistência dentro da solidão final.
Após o último voice-over, somos jogados ao início do filme. James desacordado na neve em meio às árvores, ao acordar, sai gritando por Sara mais uma vez. Após um corte abrupto dentro da mata, vemos James dentro de um carro, no banco do carona, o filme acaba.
Toad Road (2012), dirigido por Jason Banker
O tempo pode destruir tudo, ou mesmo, não existir
Nada confirma que James tenha realmente conseguido sair da influência da Toad Road, mesmo estando fisicamente longe dela. Os três últimos voice-overs de Sara são contrastados com cenas de James em situações diversas, ora andando pela mata, ora cuspindo sangue após se submeter a alguns socos enquanto bêbado. Por vezes, James não está em sã consciência. Ele tem visões com Sara, acha que ela está alí com ele. Durante seus surtos ele a pergunta sobre o que aconteceu na floresta, se ele fez alguma coisa contra ela. Para ele, toda a experiência era como um borrão. Por mais de uma vez, vemos flashes de James coberto por sangue. Também vemos um flash de Sara com a boca coberta de sangue, contrastando com uma feição que trabalha tanto com o extremo êxtase, quanto com a dor de saber que aqueles podem ser seus últimos momentos. Orgasmo e morte.
Toad Road (2012), dirigido por Jason Banker
O filme de Banker é um luto completo, uma indecisão intimista, uma dor que te explora — e explode — por dentro. Sara Anne Jones não morre apenas na trama de Toad Road. No dia 4 de setembro de 2012, a atriz morreu por overdose de drogas, em Nova York. O filme é o seu último ato.
O diretor pinta, de forma minuciosa, um retrato de uma juventude rebelde e contemporânea neste filme. A exploração por novos caminhos, a vontade de se soltar do seio familiar e a necessidade de se afirmar como não mais uma criança são residentes da casa que é Toad Road. Paixões e perigos são os fios condutores da trama. A culpa que mora dentro do jovem yorkino pelo desaparecimento de sua amada talvez seja uma mera criação de sua cabeça por conta dos olhares e julgamentos que a sociedade lhe ofereceu após sua volta. A depressão é devastadora. Realmente não sabemos se James atentou contra a vida de Sara ou não, a dubiedade é trabalhada de forma exímia.
A câmera intimista e o caráter documental são dois dos fatores que fazem o filme acariciar o rosto do espectador durante seus 76 minutos. Dependendo das suas experiências durante a adolescência e início da vida adulta, é provável que você consiga se ver em alguma ou outra situação enfrentada pelos personagens, ou até mesmo, confraternizando e fazendo parte do mesmo grupo de amigos.
Por fim, Toad Road, é um convite para uma dança solene, macabra e mórbida através dos sentidos e das sensações de uma juventude que se sente desamparada e reclusa. Diferentes leituras sobre a trama podem ser levantadas aos “finalmentes” do filme, explicitando um filme sutilmente rico em linguagem.
Sara Anne Jones nos deixou naquele mesmo 2012, sua memória e seu último ato são pincelados em uma personagem feita com o coração, com tanto sentimento que talvez fizesse parte da própria atriz. Seria Toad Road um filme inconscientemente documental até demais?
Toad Road (2012), dirigido por Jason Banker
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